UCRÂNIA: UMA CRISE ONDE NÃO HÁ ANJOS NEM DEMÔNIOS [1]General da Reserva Luiz Eduardo Rocha Paiva (*)A crise na Ucrânia, agravada no final de 2013, é continuação do jogo de poder pela preeminência na Europa Oriental, que contrapõe EUA e União Europeia (UE), leia-se OTAN, à Rússia após a Guerra Fria. Não envolve apenas interesses econômicos, haja vista a relevância estratégica de áreas terrestres e marítimas para o controle político-militar da região.Na Ucrânia, sem julgar o mérito do processo usado e a clara ingerência dos EUA e da UE, o presidente Yanukovich foi deposto por uma decisão interna. À luz do Direito Internacional, a Rússia violou a soberania ucraniana ao coagi-la na anexação da Crimeia, mesmo por plebiscito, e ao estimular o movimento separatista no leste daquele país, onde há uma grande população russa. Mas a questão não pode ser analisada com foco apenas no Direito Internacional. A crise mostrou mais uma vez que, se o interesse for vital, os poderosos imporão sua vontade, caso tenham liberdade de ação, isto é, na ausência de um poder ou aliança capaz de dissuadi-los.Após a queda da URSS, os EUA e seus aliados lançaram-se sobre a Europa Oriental e os Países Bálticos, nesses últimos debruçando-se sobre as fronteiras de uma debilitada Rússia, a cerca de 900 km de Moscou. Do antigo bolsão protetor restaram, como simpáticos ou ligados a Moscou ou, pelo menos, não alinhados a antigos inimigos, apenas a Bielorrússia, a Ucrânia e a Moldávia. Os EUA tentam estabelecer o chamado Escudo de Mísseis na região há muito tempo, sob o risível argumento de ser para defesa contra um eventual ataque do Irã. É uma ameaça inaceitável para os russos. Nesse contexto, a Ucrânia, região de histórico interesse e influência da Rússia, decidiu associar-se à UE num acordo cujo futuro tende a ser a absorção do país pela OTAN, tal qual aconteceu com a antiga Cortina de Ferro e os Países Bálticos.Ao longo da história, o núcleo político da Rússia tem sido invadido por vários povos e nações, pois a hidrografia e, principalmente, a permeabilidade do relevo – a oeste (entre os Cárpatos e o Mar Báltico), ao sul (do Mar Negro para o norte e o leste) e entre o Mar Cáspio e os Urais (passagem da Ásia) – não oferecem barreiras de vulto, máxime diante da moderna tecnologia militar. Com a Ucrânia incorporada à OTAN, a aliança ficará apenas a cerca de 800 km de Moscou, também pelo sul, e à mesma distância do Mar Cáspio. Diante de tão grave ameaça ao núcleo do poder russo e de bloqueio do vital suprimento de petróleo e gás do Cáucaso, o que faria Obama no lugar de Putin?Ainda lembrando a história, em 1961 os EUA apoiaram a invasão da Baía dos Porcos para derrubar Fidel Castro. Diante da violação da soberania cubana, Fidel tinha direito de buscar a proteção da URSS, que a ofereceu em troca da instalação de mísseis com ogivas nucleares na ilha. A ameaça direta daqueles mísseis ao seu território e a maior presença militar soviética em sua área de influência também eram inaceitáveis para os EUA. A reação veio com um ato de guerra – o bloqueio naval de Cuba – com o nome fantasioso de quarentena, violando a soberania cubana mais uma vez. A URSS retirou os mísseis com a promessa dos EUA de jamais invadirem Cuba e de também retirarem os seus da Turquia.A URSS tinha consciência da mútua destruição consequente de um conflito nuclear, portanto, algo impensável. Por outro lado, sabia que seria derrotada num conflito convencional longe de seu centro de poder e em área marítima dominada pela armada mais poderosa do mundo.Hoje, os EUA também sabem do custo inaceitável de um conflito predominantemente terrestre e aéreo nas distantes estepes russas, próximo ao núcleo de poder do oponente. A vitória seria incerta e o resultado não seria compensador, além de enfraquecê-los diante da China, sua maior rival.Nos dois casos, a segurança da potência ameaçada e o custo-benefício prevaleceram sobre o Direito Internacional, inclusive o de soberania. Qual o respaldo moral para satanizar o líder russo? Como reagiria o Brasil se uma potência antagônica fizesse uso militar do território de um vizinho, podendo a partir dele causar danos ou invadir o nosso País?Além de acordos econômicos, o Brasil tem outros de cooperação militar com a Rússia e a Ucrânia. Com a primeira, parceira no BRICS, eles envolvem nanotecnologia, defesa antiaérea e cibernética. Com a Ucrânia, temos um acordo na área científico-tecnológica envolvendo a Base de Lançamento de Foguetes de Alcântara.A posição a adotar é matéria para artigo específico, embora um detalhe deva ser levado em alta conta desde já. No Brasil, desde 1991, governos sem visão estratégica e reféns do peso eleitoral de formadores de opinião tomam decisões sob pressão internacional e criam condições objetivas para a limitação da soberania na Amazônia. A ingerência político-partidária no Ministério das Relações Exteriores enfraqueceu o Itamaraty como vanguarda da defesa nacional. Em algumas décadas, mantidas a segregação e a desnacionalização da crescente população indígena brasileira, liderada por ONGs ligadas a cobiçosas potências globais, será pleiteada a criação de nações indígenas soberanas, podendo ser por meio de plebiscito semelhante ao sucedido na Crimeia. Como de praxe, haverá prévia satanização do Brasil, com apoio externo e interno, para embasar moralmente a ingerência internacional. Por isso, o Brasil jamais poderá apoiar a Rússia na anexação da Crimeia, embora deva, também, reprovar o expansionismo político-militar da OTAN, que ameaça a segurança russa e põe em risco a paz na região.Desperta Brasil! Já passou da hora de lembrar que: o direito é filho do poder; entre outros males, estar desarmado significa ser desprezível (Maquiavel); e não se pode ser pacífico sem ser forte (Barão do Rio Branco). Crises não surpreendem lideranças responsáveis e sociedades esclarecidas, pois são conscientes de que elas um dia virão e de que defesa não se improvisa. Infelizmente não é o caso do Brasil, único responsável pelo próprio futuro.
(*) Acadêmico da Federação de Academias de História Militar Terrestre do Brasil(FAHIMTB), Titular da cadeira Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco e ex -comandante da Escola de Comando e Estado- Maior do Exército (ECEME)
[1] Extrato de artigo a ser publicado na Revista Eletrônica do Centro de Estudos Estratégicos do Exército